A ideologia punitiva sobre os
mais velhos prossegue entre um muro de indiferença, um biombo de manipulação,
uma ausência de reflexão colectiva e uma tecnocracia gélida.
Escreveu
Jean Cocteau: “Uma garrafa de vinho meio vazia está meio cheia. Mas uma meia
mentira nunca será uma meia verdade”. Veio-me à memória esta frase a propósito
das meias mentiras e falácias que o tema pensões alimenta. Eis (apenas)
algumas:
- “As pensões e salários pagos
pelo Estado ultrapassam os 70% da despesa pública, logo é aí que se tem
que cortar”. O número está, desde logo, errado: são 42,2% (OE
2014). Quanto às pensões, quem assim faz as contas esquece-se que ao seu
valor bruto há que descontar a parte das contribuições que só existem por causa
daquelas. Ou seja, em vez de quase 24.000 M€ de pensões
pagas (CGA + SS) há que abater a parte que financia a sua componente
contributiva (cerca de 2/3 da TSU). Assim sendo, o valor que sobra
representa 8,1% da despesa das Administrações Públicas.
- Ou
seja, nada de diferente do que o Estado faz quando transforma as SCUT em
auto-estradas com portagens, ao deduzi-las ao seu custo futuro. Como à
despesa bruta das universidades se devem deduzir as propinas. E tantos
outros casos…
- Curiosamente
ninguém fala do que aconteceu antes: quando entravam mais contribuições do
que se pagava em pensões. Aí o Estado não se queixava de aproveitar fundos
para cobrir outros défices
- Outra
falácia: “o sistema
público de pensões é insustentável”. Verdade seja dita que
esse risco é cada vez mais consequência do efeito duplo do desemprego
(menos pagadores/mais recebedores) e - muito menos do que se pensa - da
demografia, em parte já compensada pelo aumento gradual da idade de
reforma (f. de sustentabilidade). Mas porque é que tantos “sábios de
ouvido” falam da insustentabilidade das pensões públicas e nada dizem
sobre a insustentabilidade da saúde ou da educação também pelas mesmas
razões económicas e demográficas? Ou das rodovias? Ou do sistema de
justiça? Ou das Forças Armadas? Etc. Será que só para as pensões o pagador
dos défices tem que ser o seu pseudo “causador”, quase numa generalização
do princípio do poluidor/pagador?
- “A CES não é um imposto”,
dizem. Então façam o favor de explicar o que é? Basta de logro
intelectual. E de “inovações” pelas quais a CES (imagine-se!) é
considerada em contabilidade nacional como “dedução a prestações sociais” (p. 38
da Síntese de Execução Orçamental de Novembro, DGO).
- “95% dos pensionistas da SS
escapam à CES”, diz-se com cândido rubor social. Nem se dá
conta que é pela pior razão, ou seja por 90% das pensões estarem abaixo
dos 500 €. Seria, como num país de 50% de pobres, dizer que muita gente é
poupada aos impostos. Os pobres agradecem tal desvelo.
- A
CES, além de um imposto duplo sobre o rendimento, trata de igual modo
pensões contributivas e pensões-bónus sem base de descontos, não
diferencia careiras longas e nem sequer distingue idades (diminuindo o
agravamento para os mais velhos) como até o fazia a convergência
(chumbada) das pensões da CGA.
- “As pensões podem ser cortadas”,
sentenciam os mais afoitos. Então o crédito dos detentores da dívida
pública é intocável e os créditos dos reformados podem ser sujeitos a
todas as arbitrariedades?
- “Os pensionistas têm tido menos
cortes do que os outros”. Além da CES, ter-se-ão esquecido do
seu (maior) aumento do IRS por fortíssima redução da dedução específica?
- Caminhamos
a passos largos para a versão refundida e dissimulada do famigerado
aumento de 7% na TSU por troca com a descida da TSU das empresas. Do lado
dos custos já está praticamente esgotado o mesmo efeito por via laboral e
pensional, do lado dos proveitos o IRC foi já um passo significativo.
- Com
os dados com que o Governo informou o país sobre a “calibrada” CES, as
contas são simples de fazer. O buraco era de 388 M€. Descontado o montante
previsto para a ADSE, ficam por compensar 228 M€ através da CES.
Considerando um valor médio de pensão dos novos atingidos (1175€ brutos),
chegamos a um valor de 63 M€ tendo em conta o número – 140.000 pessoas -
que o Governo indicou (parece-me inflacionado…). Mesmo juntando mais
alguns milhões de receitas por via do agravamento dos escalões para as
pensões mais elevadas, dificilmente se ultrapassam os 80 M€. Faltam 148 M,
quase 0,1% do PIB (dos 0,25% que o Governo entendeu não renegociar com a troika,
lembram-se?). Milagre? “Descalibração”? Só para troika ver?
- A
apelidada “TSU dos
pensionistas” prevista na carta que o PM enviou a Barroso,
Draghi e Lagarde em 3/5/13 e que tinha o nome de “contribuição de sustentabilidade
do sistema de pensões” valia 436 M€. Ora a CES terá rendido no
ano que acabou cerca de 530 M€. Se acrescentarmos o que ora foi anunciado,
chegaremos, em 2014, a mais de 600 M€ de CES. Afinal não nos estamos a
aproximar da “TSU dos pensionistas”, mas a … afastarmo-nos. Já vai em mais
40%!
- A
ideologia punitiva sobre os mais velhos prossegue entre um muro de
indiferença, um biombo de manipulação, uma ausência de reflexão colectiva
e uma tecnocracia gélida. Neste momento, comparo o fácies da ministra das
Finanças a anunciar estes agravamentos e as lágrimas incontidas da
ministra dos Assuntos Sociais do Governo Monti em Itália quando se viu
forçada a anunciar cortes sociais. A política, mesmo que dolorosa, também
precisa de ter uma perspectiva afectiva para os atingidos. Já agora onde
pára o ministro das pensões?
P.S. Uma
nota de ironia simbólica (admito que demagógica): no Governo há “assessores de
aviário”, jovens promissores de 20 e poucos anos a vencer 3.000€ mensais.
Expliquem-nos a razão por que um pensionista paga CES e IRS e estes jovens só
pagam IRS! Ética social da austeridade?
Publico – 13.01.2014
Economista,
ex-ministro das Finanças
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