SE
ALGUÉM AINDA ACREDITAVA NA JUSTIÇA CEGA, HOJE TEVE UMA SURPRESA AMARGA: A
JUSTIÇA OLHOU-SE AO ESPELHO — E NÃO GOSTOU DO QUE VIU
Hoje, ao fim de sete ou oito
anos, começou o julgamento de três juízes desembargadores acusados de
corrupção. Três. Logo eles, que deviam ser o último reduto da decência num país
onde a palavra “corrupção” já perdeu o peso das sílabas. É uma foto cruel: os
guardiões da lei, agora sentados do lado errado da barra. E lá estão —
compostos, engravatados, com a serenidade de quem sabe que a justiça, cá,
costuma ser branda com os seus.
Mas o dia não se ficou por aí. Cem inspetores da PJ espalham-se pelo país, especialmente em Oeiras e Lisboa — buscas no Novo Banco, na KPMG, em escritórios de advogados e em residências de gente “respeitável”. O motivo? Entre outros, muitos outros que ainda desconhecemos, a venda da Herdade da Ferraria, no Meco, à mulher de um administrador do banco. Uma pechincha de 1,1 milhões por uma propriedade que vale dez vezes mais. É o tipo de negócio que só acontece em Portugal: propriedade de luxo ao preço de batatas, desde que o comprador tenha o cartão certo e o número de telefone certo.
E, como se o universo tivesse
um estranho sentido de humor, no mesmo dia o Ministro das Finanças assinou a
venda da participação do Estado no Novo Banco a um grupo francês. Vinte e cinco
por cento daquilo que nós pagámos — e que nos custou no total mais de oito mil
milhões, devido à resolução do BES liderada pelo eminente Governador do BP
Carlos Costa — entregues de bandeja. O Estado — ou seja, nós — perde mais de
seis mil milhões e agora recebe, imagine-se, 1,6 milhões. Nem dá para cobrir o
custo dos comunicados de imprensa. E o pouco que entra nem sequer fica nos
cofres públicos, indo em parte significativa para o Fundo de Resolução. Só uns
700 ou 800 mil vão para o Orçamento do Estado. Traduzindo: devolvem-nos as
migalhas e ainda nos agradecem por termos pago o banquete.
Há quem chame a isto economia
de mercado. Eu chamo-lhe esbulho legalizado. Uma coreografia antiga entre
políticos, banqueiros e auditores — todos dançando ao som do mesmo fado
desafinado. E nós, os contribuintes, aplaudimos por hábito, cansados demais para
vaiar.
Trinta anos disto, ou mais.
Centenas de milhões desaparecidos entre offshores, sociedades veículo,
escritórios de advogados que escrevem as leis que depois os seus clientes usam
para as contornar. E agora, juízes. Os mesmos que deviam dizer “basta”. É o país
ao espelho — e o reflexo devolve-nos uma imagem difícil de encarar.
Uma justiça célere que deixa
prescrever crimes, que não age e tem de soltar presos preventivos, que deixa
outros fugir das cadeias, mas condena a velhinha que recebe uma mísera pensão,
que nem lhe chega ao dia 15, por furtar um chocolate ou uma embalagem de
iogurtes baratos no supermercado do grupo com sede na Holanda.
E assim continuamos:
aplaudindo a coreografia, pagando o banquete, e esperando que algum dia o país
aprenda os passos desta dança macabra. Hoje, a justiça olhou-se ao espelho. A
grande questão é se o país também terá coragem de encarar o reflexo.
António Ventura / Musgueira — Lisboa, 29 Out 25
Sem comentários:
Enviar um comentário