ONZE LONGOS
ANOS NÃO MATAM, MAS MOEM
(António Ventura)
Não
sei se José Sócrates é culpado ou inocente. Não sei se se deixou corromper ou
se corrompeu outros. O que sei — e todos devíamos saber — é que, num Estado de
Direito, qualquer cidadão é inocente até prova em contrário. E é precisamente
aí que reside o problema central deste processo: até hoje, a culpa continua por
provar, e o julgamento continua por acontecer.
Sócrates
sempre foi um “animal feroz”, e continua a lutar para adiar, enfraquecer ou
evitar o julgamento a que está sujeito. Mas, mais do que sobre ele, este caso
diz respeito ao estado da justiça portuguesa. O que se passou no chamado
“Processo Marquês” é, no mínimo, preocupante: mais de 300 juízes envolvidos,
anos de inquéritos, milhões de euros gastos, uma acusação labiríntica, prazos
que se arrastam, testemunhas que envelhecem e memórias que se apagam.
Independentemente
do desfecho, a justiça já perdeu. Porque justiça tardia é justiça falhada. E
porque este processo, mais do que esclarecer, serviu para alimentar a descrença
num dos pilares fundamentais da democracia. Como confiar numa justiça que prende
um ex-primeiro-ministro em direto nas televisões, mas que não consegue julgá-lo
em mais de uma década?
José
Sócrates não foi um primeiro-ministro qualquer. Reformador, moderno, polémico —
o que se quiser. Mas isso não importa aqui. O que importa é que o Ministério
Público, como acusador, tem o dever de provar a culpa. Não o contrário. E
quando um procurador afirma que Sócrates “terá agora a possibilidade de provar
a sua inocência”, não está apenas a inverter o ónus da prova — está a violar um
princípio basilar do direito.
Mas
o mais grave é que este caso é apenas um entre muitos. Todos os dias surgem
notícias de novos casos de corrupção nas autarquias, nas empresas públicas, em
organismos do Estado. Casos que se acumulam, que se esquecem, que prescrevem. O
país assiste a tudo isto com uma mistura de resignação e fadiga. Porque há
muito que percebeu que a justiça não é igual para todos.
Não
se trata de defender Sócrates. Tal como não se trata de defender Duarte Lima,
Cavaco Silva, Ferreira do Amaral, Mexia, Zeinal Bava, Paulo Portas, Pedro
Passos Coelho, Miguel Relvas, Dias Loureiro, Oliveira e Costa — ou qualquer
outro dos muitos que, sendo presumivelmente inocentes ou oficialmente
prescritos, continuam a pavonear-se impunes, como se nada tivesse acontecido.
O
que se lamenta é o país que fomos permitindo construir. Um país onde os fundos
europeus que deveriam ter desenvolvido o interior e modernizado o Estado foram
desviados para paraísos fiscais, empresas de fachada e contas em nomes de
terceiros. Um país onde se vive “à grande e à francesa” à custa de promessas
vazias, de favores entre amigos e da eterna crença de um povo sereno, crédulo e
obediente.
Como
disse um venerando desembargador a propósito deste processo: “Quem cabritos
vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm.” Pois bem, venha então a prova.
Venha o julgamento — mas venha um julgamento justo, célere e sério. Porque não
é só Sócrates que está sob escrutínio. É a própria justiça portuguesa que está,
neste momento, sentada no banco dos réus.
E, até ver, continua a ser ela quem mais falha.
Quinta Patiño – 08-07-2025
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