quarta-feira, 9 de julho de 2025

 

A VERGONHA DE MARCELO E A TRAGICOMÉDIA DA GOVERNAÇÃO

António Ventura

Num país que se quer democrático, transparente e respeitador dos princípios republicanos, é profundamente preocupante assistir à degradação progressiva da função presidencial. Marcelo Rebelo de Sousa, outrora visto como figura moderadora e atenta ao interesse público, revelou-se, na prática, um garante da continuidade política de um governo que chegou ao poder por vias que muitos classificam como um verdadeiro golpe judicial e palaciano.

Num tom cada vez mais embaraçado e forçado, sempre que se encontra diante de câmaras e microfones, o Presidente limita-se a reiterar o seu apoio ao governo, apelando a um alegado “tempo” para corrigir os erros herdados, executar o seu programa e avançar com reformas legislativas. Tudo isto com um descaramento que fere o bom senso e a inteligência de um povo cada vez mais perplexo e descrente. Marcelo garante que o Governo é para uma legislatura de 4 anos. E se o diz, vá-se lá saber como o poderá garantir.

O caso mais flagrante é, sem dúvida, o da Saúde. A ministra Ana Paula Martins tem vindo a protagonizar um desempenho que não pode ser classificado senão como desastroso. A sucessão de casos de má gestão, omissão e falta de capacidade política é gritante: partos em ambulâncias paradas à beira da estrada, cidadãos a morrer sem assistência atempada, um INEM em estado de colapso, promessas vãs e medidas improvisadas.

A ministra afirmou, com orgulho e alguma soberba, que vinha “pôr ordem na casa”. O que temos, em vez disso, é uma gestão que nem uma pequena mercearia conseguiria sustentar, quanto mais um Ministério com uma dotação orçamental superior a 16 mil milhões de euros anuais. A isto somam-se escândalos de pagamentos obscenos a médicos por intervenções ao sábado, sem qualquer critério transparente ou rigor técnico — uma espécie de elite médica a autogerir e a auto-premiar-se com dinheiro público.

Marcelo Rebelo de Sousa, perante tudo isto, permanece impávido. Em vez de exigir responsabilidade política, limita-se a repetir que o Governo “está a tratar de tudo”. O problema é que esse “tudo” parece cada vez mais resumir-se à sobrevivência política, à propaganda institucional e à manutenção de um status quo que já não serve os portugueses.

A sua insistência em referir que o Governo tem uma legislatura de quatro anos não é um apelo à estabilidade democrática, mas antes uma demonstração de conivência e resignação cúmplice. Ao proteger o poder instalado, Marcelo trai a função que a Constituição lhe reserva — a de vigilante supremo do interesse nacional.

Não posso deixar de afirmar, com toda a clareza: o Presidente da República já não tem condições políticas nem morais para concluir o seu mandato. Faltam-lhe oito meses, mas é imperativo que fique registado — para a História e para a consciência colectiva — o meu direito à indignação, de que não abdico, com todas as consequências.

Marcelo Rebelo de Sousa é, sem sombra de dúvida, o pior de todos os que, nos últimos tempos, ousaram classificar os portugueses de “tontinhos”, “ignorantes” ou “imbecis”. Declaro-o sem rodeios: Marcelo é um traste político — o maior responsável pela situação de degradação institucional, social e económica em que o país caiu.

Num país desperto, exigente e consciente, esta realidade seria intolerável. Mas enquanto imperar a resignação e a apatia, a vilania persistirá impune.

Pedreira dos Húngaros – 09-07-2025


terça-feira, 8 de julho de 2025

 

ONZE LONGOS ANOS NÃO MATAM, MAS MOEM

(António Ventura)

Não sei se José Sócrates é culpado ou inocente. Não sei se se deixou corromper ou se corrompeu outros. O que sei — e todos devíamos saber — é que, num Estado de Direito, qualquer cidadão é inocente até prova em contrário. E é precisamente aí que reside o problema central deste processo: até hoje, a culpa continua por provar, e o julgamento continua por acontecer.

Sócrates sempre foi um “animal feroz”, e continua a lutar para adiar, enfraquecer ou evitar o julgamento a que está sujeito. Mas, mais do que sobre ele, este caso diz respeito ao estado da justiça portuguesa. O que se passou no chamado “Processo Marquês” é, no mínimo, preocupante: mais de 300 juízes envolvidos, anos de inquéritos, milhões de euros gastos, uma acusação labiríntica, prazos que se arrastam, testemunhas que envelhecem e memórias que se apagam.

Independentemente do desfecho, a justiça já perdeu. Porque justiça tardia é justiça falhada. E porque este processo, mais do que esclarecer, serviu para alimentar a descrença num dos pilares fundamentais da democracia. Como confiar numa justiça que prende um ex-primeiro-ministro em direto nas televisões, mas que não consegue julgá-lo em mais de uma década?

José Sócrates não foi um primeiro-ministro qualquer. Reformador, moderno, polémico — o que se quiser. Mas isso não importa aqui. O que importa é que o Ministério Público, como acusador, tem o dever de provar a culpa. Não o contrário. E quando um procurador afirma que Sócrates “terá agora a possibilidade de provar a sua inocência”, não está apenas a inverter o ónus da prova — está a violar um princípio basilar do direito.

Mas o mais grave é que este caso é apenas um entre muitos. Todos os dias surgem notícias de novos casos de corrupção nas autarquias, nas empresas públicas, em organismos do Estado. Casos que se acumulam, que se esquecem, que prescrevem. O país assiste a tudo isto com uma mistura de resignação e fadiga. Porque há muito que percebeu que a justiça não é igual para todos.

Não se trata de defender Sócrates. Tal como não se trata de defender Duarte Lima, Cavaco Silva, Ferreira do Amaral, Mexia, Zeinal Bava, Paulo Portas, Pedro Passos Coelho, Miguel Relvas, Dias Loureiro, Oliveira e Costa — ou qualquer outro dos muitos que, sendo presumivelmente inocentes ou oficialmente prescritos, continuam a pavonear-se impunes, como se nada tivesse acontecido.

O que se lamenta é o país que fomos permitindo construir. Um país onde os fundos europeus que deveriam ter desenvolvido o interior e modernizado o Estado foram desviados para paraísos fiscais, empresas de fachada e contas em nomes de terceiros. Um país onde se vive “à grande e à francesa” à custa de promessas vazias, de favores entre amigos e da eterna crença de um povo sereno, crédulo e obediente.

Como disse um venerando desembargador a propósito deste processo: “Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm.” Pois bem, venha então a prova. Venha o julgamento — mas venha um julgamento justo, célere e sério. Porque não é só Sócrates que está sob escrutínio. É a própria justiça portuguesa que está, neste momento, sentada no banco dos réus.

E, até ver, continua a ser ela quem mais falha.

Quinta Patiño – 08-07-2025

  AS MAMAS, O LEITE E A MAMAGEM Crónica de um país ao sol (e à sombra da estupidez) Acordei cansado. Não daquele cansaço bom, de quem trab...